“Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente” (I Co 14.15).

Paulo escreveu as palavras acima, a fim de corrigir uma comunidade que estava deixando a desejar no exercício de sua devoção. Para compreendermos o que Paulo ensina neste versículo, é importante considerar que há três vertentes históricas de espiritualidade, às quais se vincula a nossa espiritualidade. São elas:

  1. a)A espiritualidade intimista-oriental– esse é um modelo de espiritualidade voltado para interiorização do ser, com a prática de meditações, técnicas de autodomínio e incursões contemplativas. Essa matriz acaba produzindo uma espiritualidade centrada no indivíduo;
  2. b)A espiritualidade legalista-judaica– nesse modelo de espiritualidade padronizada, valoriza-se a satisfação da lei, em completo desprezo à individualidade de cada um, produzindo uma espiritualidade racional e insensível. É um modelo de espiritualidade centrado na lei;
  3. c)A espiritualidade dicotômica-grega– Esse modelo de espiritualidade apoia-se nos filósofos gregos. Suas reflexões divorciam o espiritual do material, a razão da emoção, o sagrado do profano. É um modelo de espiritualidade abstrato, prendendo-se demasiadamente a conceitos, e, portanto, muito distante da realidade. Essa vertente produz uma espiritualidade centrada na especulação filosófica.

Essas três correntes históricas, ainda hoje, fomentam grande parte da compreensão e prática da espiritualidade cristã – ora acentuadamente centrada no eu, ora calcada em normas e sem qualquer expressão de sensibilidade, ora puramente dicotômica e abstrata.

O cristão deve praticar uma devoção caracterizada pelo equilíbrio entre razão, emoção e sensibilidade. A Palavra de Deus nos orienta sobre os aspectos constitutivos da devoção saudável. Vejamos:

1)  O aspecto racional da devoção cristã

Diz Paulo: “orarei com o espírito mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito mas também cantarei com a mente”.

Deus é um ser inteligente e nos fez inteligentes. O ser humano foi dotado por Deus com a capacidade de reflexão, análise e memória. Essa condição deve ser determinante no exercício da devoção.

Conforme o Sl 77, uma pessoa pode exercitar sua fé e reavaliar suas crises espirituais a partir do uso da razão. Asafe levantou questionamentos, num claro exercício da razão: De noite indago o meu íntimo, e o meu espírito perscruta. Rejeita o Senhor para sempre? Acaso, não torna a ser propício? Cessou perpetuamente a sua graça? Caducou a sua promessa para todas as gerações? Esqueceu-se Deus de ser benigno? Ou, na sua ira, terá ele reprimido as suas misericórdias”? (vv.6-9).

O que também é admirável no texto é que uma mente perspicaz em indagar é também lúcida para relembrar e avaliar a história, revendo conceitos e fatos e superando obstáculos e dúvidas: “Recordo os feitos do Senhor, pois me lembro das tuas maravilhas da antiguidade. Considero também nas tuas obras todas e cogito dos teus prodígios. O teu caminho, ó Deus, é de santidade. Que deus é tão grande como o nosso Deus? Tu és o Deus que operas maravilhas e, entre os povos, tens feito notório o teu poder” (vv.11-14).

A razão aplicada à devoção produz criatividade. Como seres inteligentes e criativos, criados à imagem e semelhante de um Deus inteligente, devemos desenvolver uma espiritualidade criativa e inteligente. Lamentavelmente, não é isso que se vê com frequência em muitas igrejas, as quais se tornam palco para expressões infantilizadas, ridículas e antibíblicas.

A devoção praticada por Jesus fundamentava-se nas Escrituras do Antigo Testamento, tinha consistência e era coerente. Sua pregação tinha conteúdo; era inteligente, desafiava a reflexão, não tinha como ser contra-argumentada.

A devoção cristã é desenvolvida sobre a verdade das Escrituras. Segundo o ensino bíblico, o culto cristão é um culto prestado com a razão: Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Rm 12.1).

  1. O aspecto emocional da devoção cristã

Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente”.

Jesus ensinou: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força” (Lc 10.27)Ele não fala apenas de entendimento e força; pelo contrário, começa falando do coração e da alma, que são o centro das emoções. Em sua espiritualidade, Jesus exercitou intensamente as emoções: alegrava-se, chorava, indignava-se, demonstrava compaixão.

Deus nos fez seres racionais, mas também seres constituídos de emoção. Somos dotados com a capacidade de sorrir e chorar, alegrar e entristecer, irar e perdoar. Portanto, não podemos excluir da nossa espiritualidade as emoções. O Espírito Santo tem emoções; e é ele quem dosa e direciona nossas emoções. Devemos expressar sentimento em nossa devoção. Devemos aprender a celebrar mais, alegrando-nos diante do Senhor, bem como chorar mais – pelos nossos pecados e a necessidade de consagração.

Diz o profeta Isaías: Porque assim diz o Alto, o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e vivificar o coração dos contritos” (Is 57.15). Não podemos deixar a mente sufocar o espírito; mas devemos buscar o equilíbrio entre a razão e a emoção.

  1. O aspecto da sensibilidade na devoção cristã

Uma espiritualidade equilibrada leva o homem a uma percepção e sensibilidade maior quanto à vida e necessidades do próximo.

Jesus demonstrou intensa sensibilidade em relação às pessoas: Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36). O seu convite demonstra sensibilidade ante os dramas das pessoas: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28).

A nossa devoção só tem valor se nos tornar mais sensíveis diante das mazelas deste mundo. É precisamente isso que diz Jesus em Mateus 9.13: “Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos; pois não vim chamar justos, e sim pecadores [ao arrependimento]”.

Através do profeta Isaías, o Senhor declara: Porventura, não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? Porventura, não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e, se vires o nu, o cubras, e não te escondas do teu semelhante”? (Is 58.6,7).

Tiago também ressalta a necessidade de uma devoção caracterizada pela sensibilidade: “Se alguém supõe ser religioso, deixando de refrear a língua, antes, enganando o próprio coração, a sua religião é vã. A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo” (Tg 1.26,27).

Como igreja que deseja exercitar corretamente a devoção cristã, cultivemos uma espiritualidade da mente, do espírito e do coração! Busquemos o equilíbrio entre a razão e a emoção e mostremo-nos mais sensíveis às necessidades à nossa volta!

Uma devoção com essas características é saudável, agrada a Deus e abençoa o mundo.

Rev. Eneziel Peixoto de Andrade
eneziel@hotmail.com

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